No meio do povo cristão, infelizmente, tenho observado uma competitividade que não combina com o Evangelho.
Pessoas que caminham ao nosso lado, que deveriam ser apoio e parceria, muitas vezes só sustentam aquilo que lhes interessa. Querem mandar, assumir controle, ser "donas"de algo e, quando você precisa delas, quando está vulnerável, cansado ou sobrecarregado, simplesmente se afastam.
Essa realidade não é nova.
Lembro-me de Aitofel, conselheiro íntimo de Davi (2Sm 15–17). Quantas conversas particulares, quantas confidências, quantos desabafos de alma Davi deve ter compartilhado com ele… e, de repente, Aitofel troca de lado. Ao aconselhar Absalão, ele diz essencialmente:
“Ataquemos agora, porque sei exatamente onde Davi está fraco.”
A dor desse tipo de golpe aparece com força no Salmo 55, onde Davi lamenta:
“Não era um inimigo que me afrontava…
Era tu, meu companheiro, meu amigo íntimo.” (Sl 55.12–14)
Não é difícil entender o suspiro dele:
“Quem me dera asas como de pomba… voaria para longe.” (Sl 55.6)
E essa mesma experiência ecoa no Novo Testamento. Paulo, escrevendo a Timóteo em sua fase mais solitária, diz:
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“Demas me abandonou, amando o presente século…” (2Tm 4.10)
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“Crescente foi para a Galácia, Tito para a Dalmácia.” (2Tm 4.10)
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“Somente Lucas está comigo.” (2Tm 4.11)
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“Na minha primeira defesa, ninguém me assistiu; antes, todos me desampararam…” (2Tm 4.16)
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“Traz Marcos, pois me é útil para o ministério.” (2Tm 4.11)
Paulo não escreve como quem desaba, mas como quem instrui. Alguém que já passou por muitos dissabores, que já viu de tudo, e que sabe discernir entre quem deixou por fraqueza, quem partiu por outros compromissos e quem realmente agiu com raiz de maldade.
E, acima de todos, o próprio Senhor Jesus foi abandonado por seus discípulos na hora da pressão (Mt 26.56). Não por maldade em todos os casos, mas por medo, fraqueza e imaturidade. Ainda assim, Cristo permaneceu firme e, posteriormente, capacitou justamente aqueles que o deixaram. A graça restaurou. O Espírito transformou.
Isso nos ensina que:
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há pessoas que nos abandonam por fraqueza, como os discípulos;
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há pessoas que nos abandonam por amor ao mundo, como Demas;
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há pessoas que nos deixam por motivos legítimos, como Crescente e Tito;
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e há pessoas que nos traem por maldade mesmo, como Aitofel.
E nós?
Não somos adivinhos. Não temos bola de cristal. Não sabemos antecipar as motivações de todos. Talvez nós mesmos já tenhamos falhado com alguém em algum momento — espero que não por maldade, mas por limitação humana.
O que nos cabeé em situações assim é manter um coração perdoador, mas também uma postura firme. Firmeza sem rancor. Graça sem ingenuidade. Misericórdia sem perder o senso de realidade.
A vida cristã é feita assim: caminhamos com pessoas, abrimos o coração, às vezes somos feridos… mas seguimos adiante, porque o Deus que nunca nos abandona permanece fiel — mesmo quando muitos ao nosso redor se dispersam.
(Continua na parte 2)
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